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sexta-feira, 27 de maio de 2011

VELHO NÉ E O LOBISOMEM.


Velho Né barbeiro estava voltando da missa onde repicara o sino e, nem bem atravessara a Praça da Matriz, lá estava o diabo do velho Esaú olhando com aqueles olhos merencórios, mortiços e apagados sem o brilho dos seres desse mundo. Supersticioso e católico praticante desde seus tempos de Umbuzeiro, velho Né assustou-se com a aparição súbita do velho Esaú, perguntando, o que ele estava fazendo ali.

Era mais ou menos sete horas da manhã, logo terminada a primeira missa do dia, nem bem as beatas e carolas haviam desaparecido pelo viaduto ou na esquina do Beco do Açougue.

Velho Né era um desses profissionais de ofício barbeiro, levando uma vidinha mansinha de fazer tinir o badalo da matriz, recebendo uns trocados do dono do morto, mas na maior das vezes era compelido por um sentimento de piedade cristã a perdoar o pagamento, pois no seu raciocínio, o dono do morto perdia o parente e, ainda tinha de arcar com pagamento pelo dobrado dos sinos. Era assim uma alma boa e generosa ocupando-se basicamente em cortar cabelos mal nascidos da sua freguesia composta simultaneamente de jovens e velhos da sua faixa de idade. Pai de prole numerosa, velho Né fazia das tripas coração para cuidar da mulher e filhos, com a incumbência de hospedar parentes e antigos vizinhos, preferentemente às sextas e sábados, religiosamente, visitantes da feira semanal. Durante as festas e quermesses, no Natal e, muito especialmente na festa de 8 de dezembro, dia dedicado a Nossa Senhora da Conceição, padroeira da cidade, lá estava o velho Né a resmungar sempre alguma coisa, a cofiar bigodes e cabelos, e a balbuciar coisas aos pés dos cangotes da negrada que ia fazer barba e cabelo, falando para si mesmo, sem vivente alma desse mundo entender sua aflição, em sons guturais e ininteligíveis para quem só aprendeu o simples hábito comum de falar.

Por mais que os fregueses tentassem adivinhar, ou melhor, ouvir suas palavras, nada ouviam. Falava como se um ventríloquo engolira seu próprio boneco, embora o bafo com cheiro de fumo de corda encontrasse ressonância exatamente no pescoço do freguês que nem ligava mesmo para os perdigotos. Quando resolvia sair dos seus mistérios e falar, velho Né disparava como uma metralhadora sem encontrar oponente para os seus argumentos destituídos de lógica, no linguajar das brenhas da Fazenda Umbuzeiro de onde havia saído em busca de dias melhores para sua família e a si próprio.

Por aí já se vê que velho Né jamais trabalhara na cidade em outras ocasiões, preferindo escolher a profissão como se barbeiro bissexto ou fruto temporão, alcançando o que considerava a maior profissão da vida e que havia ganhado algum dinheiro.

Na roça em que lavara toda a sua existência, dizia que ficava sempre na dependência e na esperança de que o Velho do côrno do São Pedro mandasse uma mijada lá de cima na cabeça dos filhos de Deus.

Acostumado e assimilado pelos garotos, tornara-se um dos melhores mestres de barbearia, sendo de causar espanto como um roceiro conseguira o manejo de uma tesoura e uma navalha, sendo o mais requisitado para desbastar as cabeleireiras da rapaziada à Príncipe Danilo, além de ser servo fiel e dedicado que conversava de antemão com os pais dos rapazes, de modo que o corte de cabelo era decidido não pelo freguês eventualmente sentado, mas com antecedência entre os pais e ele. Como era fiado só para depois os pais ressarcirem os prejuízos, sem juros nem correção que aqueles tempos ainda não existiam, ou se existiam, eram brandos, seguramente correção não existia, pois, invenção de general ladrão e vendilhão do país. Velho Né assumia os riscos da sua empreitada e as zangas dos descontentes que não tinham como sair do indefectível corte à “Príncipe Danilo”, aquele cortinho curtinho, execrável e miserável da adolescência de todos nós, dando a impressão na rua, de que o “Seo Né” possuía uma cabaça serrada ao meio e, sob medida enfiava na cabeça dos fregueses para, em seguida, meter a tesoura sem dó nem piedade!

Exigente e compenetrado da sua sagrada missão velho Né não admitia gracejos nem piadinhas, mandando o indivíduo que a tanto ousasse, para casa, na hora, pouco importando se com metade da cabeça raspada ou meio bigode por fazer, ou se, sem o pé-do-cabelo por acertar. Era o terror da rapaziada.

Não obstante fosse homem sério e já amadurecido, velho Né se permitia de vez em quando, contar uma das suas histórias picantes, sem admitir opiniões divergentes ou aprovação de quem quer que seu ouvinte fosse. Todos tinham de escutá-lo sem rir, o que caso ocorresse seria interpretado como falta de respeito aos mais velhos, coisas que o prestativo Né não admitia.

Até lhe crescer uma barriga enorme, provavelmente vítima de milhões de verminoses representados pelos helmintos e platelmintos, velho Né trabalhava diariamente, não parando nem aos domingos, assim terminasse a missa onde, como já o dissemos, fazia às vezes de coroinha, a falta de melhores penitentes e crentes, ele mesmo vestindo aqueles paramentos de coroinha, com sua pança proeminente a lhe encurtar as vestes que teriam sido, certamente e com absoluta certeza, confeccionados para serem enfiados em algum moleque e não num homem feito como o velho Né.

A tristeza não lhe deixava de bater à porta, porque a molecada sem-vergnha já não mais queria mostrar-lhe respeito, chamava-o abertamente, à sua passagem, de “velho Né-barriga-d’água”. Alguns mais literatos ariscavam um palpite dizendo que a doença do velho era uma terrível e incurável hidropisia, palavra estranha e difícil, valendo para o Malaquias, no seu claudicante linguajar, a informação de que Né estava com “iopsia”.

Mantinha, no entanto, o respeito entre os mais velhos, mesmo porque ninguém iria rir da miséria e doença do próximo, não perdendo sua freguesia, antes, aumentando-a, mesmo quando souberam que o velho Né estava acamado, indo em romaria, como a esperar, em sentinelas seguidas, o velho Né bater a “caçoleta”.

O dia nem bem nascera e Né encontrava velho Esaú dando-lhe a impressão de tê-lo visto surgir do nada, jurando que enquanto batia o sino, lá de cima da torre, olhava constantemente para a rua, espiando as pessoas que chegavam para a missa e, lá não estava o velho Esaú. Via bem quando dona Dejanira atravessara a praça levando no seu passo cadenciado, terço à mão e lábios balbuciantes, chalé negro e trabalhado de rendilhado do Ceará à cabeça, sem olhar para um lado ou outro. Vira a irmã dos carvalhais, carola assumidas, uma delas de sorriso divinal e misterioso, cuja beleza simples e singela faria corar de vergonha a Monalisa, moça velha que gastara vida e mocidade a costurar, arrumar altar de igreja para a missa, a engolir hóstias das mãos de padre Eutímio e, depois José, num desperdício incompreensível, pois moça de prendas, de excelente e fina família de quem nada de desabonador jamais se ouvira deles, salvo a maledicência de que “enviuvara sem casar, morto seu namorado de infância e perdendo os pendores para os homens”. Vira, também, Piroca Dentão deixar sua pequena tenda de sapateiro, dirigir-se ao templo, bem como, D. Francisquinha com seu andar apressadinho e nervoso, pisando macio e rapidinho, mulher casada com o “seo” Antonio Berro Grosso.

Como todos sabem a acentuada decadência religiosa da Igreja Católica, não tem permitido mais de meia-dúzia de carolas e beatas ou ainda “papa-hóstias” nos templos nas manhãs de frio. Agora ali, à saída do templo católico, lá estava Esaú, olhar estufado como se quisessem saltar das órbitas, ou a espera de algum lenitivo que acabasse com o seu remorso de filho do diabo. Jurava o homem que Esaú aparecera do nada.

-Veio Né, “vosmecê” me corta o cabelo e me cuida de fazê os cabelo da barba...

- Disgraça veia... tu ainda faz cabelo e barba? Tá pareceno um lubí... senta aí vou ti amansá.

A ironia que a vida costuma pregar as pessoas levou a que pelo pouco conhecimento, velho Né dirigisse, sem maiores maldades, aqueles gracejos, ao freguês, sem, contudo, ter a ideia de ferir Esaú ou descobrir-lhe os segredos que afinal de contas velho Né não tinha conhecimento algum até aquele dia.

Cabelo ensebado, roupas em desalinho com fiapos esvoaçantes, Esaú sentou-se na cadeira humilde do barbeiro, tendo mestre Né ajeitado o recosto da cabeça para dar início ao serviço. Pincel e potinho de espuma, pedaço de sabão de massa na mão, velho Né tentava arrancar para o fundo do potinho um pouco de espuma com a qual besuntaria a cara gorda e vermelhona, como se de alemão, do velho Esaú, destarte, arrancar os grossos e espessos cabelos.

Esaú silencioso não puxava conversa e velho Né começava a falar embolado para dentro conforme seu velho e conhecido hábito. Passa e besunta espuma espalhando-a caprichosamente sobre os pelos de Esaú enquanto este, impassível, olhava pelo espelho rapidamente, fechando os olhos. Tomando posição, velho Né sobraça a cabeçorra de Esaú, descreve um ângulo com o seu cotovelo ficando por cima do cocuruto de Esaú, e, assim, enfia a navalha com vontade. Não se sabe por que, Né sentiu que a navalha afundara na cara do Esaú, pediu desculpas e procurou queimar o provável corte com “aqua velva” trazida pelo seu cunhado de São Paulo, sobraçando um pedaço de pano velho e encardido que servia para limpar restos de espuma das caras dos fregueses. Surpresa maior iria pegar de roldão o velho Mestre, pois nem ao menos arranhara a cara do velho Esaú e já estava a” justiça divina apontando os caminhos sacrossantos”.

Sangue não aparecia. Embaixo do grosso queixo duplo de Esaú, lá estava aberto um lanho de quase cinco centímetros, para espanto de Né, não saia nem uma só gotinha de sangue, assim como Esaú sequer se mexera ou se queixara do corte, o que seria natural. Apenas a pele branca e esgarçada denotava o corte. Desconfiado o velho Mestre perguntou a Esaú se não estava doendo. Mudo estava Esaú, assim ficou. Mandou que Esaú abrisse os olhos.

-Esaú abri os oio. A navaia cortô vamicê e eu tenho de queimá com aqua velva.

-!!!

- Esaú, tá durmino, homi?

Sem abrir os olhos Esaú respondeu:

- Fui pro mato tirá meu timbó, tudo qui vê calado é mio.

- Tá doido, homi!!!

De um salto Esaú derrubou o espelho à sua frente, obra de arte feita por seu compadre Crispim cujo vidro mandara buscar no Bonfim e, agora ali, estava tudo quebrado, seu puro cristal duvidoso. Esaú se comprometeu que pagaria na hora. Feita a barba e o cabelo velho Né resolveu ir para sua casa correndo, pois se sentira muito incomodado.

Da cabeça de Esaú surgiram morotós gigantes, transformando-se em multicoloridas libélulas que se dirigiam às portas do estabelecimento. Velho Né constatou que saíam da cabeça de Esaú, como se fossem os miolos, em pedacinhos miudinhos. Do nariz escorria uma gosma branca e pegajosa como semelhante ao catarro de tuberculoso galopante em fase final. Era prenúncio das quaresmais. Esaú começava a putrefazer-se para a transformação de alma penada do outro mundo.

Naquela noite nos espojeiros dos animas, Esaú estaria com a filha dele, duas bestas-feras, pois que viviam amasiados.

Max Brandão Cirne

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segunda-feira, 23 de maio de 2011

Crônicas de Itiúba.

Em breve estaremos postando aqui algumas crônicas sobre pessoas e coisas de Itiúba, Sertão da Bahia, escritas desde a minha meninice, até a década de 70.


Espero que seja de proveito para quem lê-las.

domingo, 22 de maio de 2011

Retomando o blog

Passei algum tempo sem postar nada neste blog. Algumas coisas aconteceram. Primeiro estava muito ocupado escrevendo minha monografia do curso de Licenciatura em História pela PUC - Rio de Janeiro, depois perdi a senha e só consegui recuperar hoje , graças a minha filha Dianayara Cirne, Especialista em História Regional pela UNEB - Campus - V.
Agora tentarei fazer postagens diárias sobre variados temas históricos.
Se você quiser saber algo sobre qualquer tema histórico faça um comentário, pergunte, discuta.
Quanto mais estudamos, mais descobrimos que nada sabemos.